Muitos são os exemplos de iniciativas nos últimos anos com a finalidade de impulsionar a cultura de doação no Brasil. Os desafios são diversos e passam tanto por questões culturais, quanto pela grave crise econômica e política vivida atualmente pelo país, bem como por um ambiente jurídico que não só não incentiva, como muitas vezes dificulta a doação voluntária dos brasileiros.
Especialistas afirmam que não basta remover os entraves às doações no Brasil, mas é preciso contar com estímulos para a construção de uma cultura de doação mais sólida. Como ocorre em boa parte do mundo, os incentivos fiscais podem cumprir um papel importante nessa direção.
O assunto é tema do quinto episódio da websérie “Sustenta OSC”, lançado nesta segunda-feira (03/09). A obra retrata os principais desafios para o fortalecimento da sustentabilidade econômica das Organizações da Sociedade Civil (OSCs), dando luz aos caminhos para superá-los.
Parte dos episódios discute a promoção de um ambiente regulatório mais propício ao financiamento das OSCs, ou seja, reflete sobre como a legislação pode promover ou incentivar as doações da sociedade para as organizações.
O lançamento da iniciativa no período pré-eleitoral tem como propósito chamar atenção para a importância da pauta do fortalecimento das OSCs como elemento necessário na agenda ampla do país apontando o que poderiam ser pautas e agendas tanto legislativas, quanto de políticas ou ação pública.
“Nos últimos trinta anos, tivemos muitas demonstrações de como um espaço cidadão e uma sociedade civil fortes são fundamentais para que possamos lastrear um ambiente de ação pública confiável, consistente, republicano, representativo e efetivo. Pensar não só as novas agendas, mas em como fortalecer as instituições democráticas e o espaço de ação coletiva na sociedade tem que ser parte da macro agenda do país”, afirma José Marcelo Zacchi, secretário-geral do GIFE.
Sustentabilidade econômica da sociedade civil organizada
De acordo com a “Pesquisa Doação Brasil”, realizada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), a destinação de recursos de pessoas físicas a organizações da sociedade civil totalizou R$ 13,7 bilhões em 2015, apenas 0,23% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. O número é relevante, porém discreto se comparado a outros países, como os Estados Unidos, onde os cidadãos doaram, no mesmo ano, R$ 1 trilhão a organizações do campo.
Lançada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a pesquisa Perfil das Organizações da Sociedade Civil no Brasil revela que a transferência de recursos da União para as OSCs entre 2014 e 2016 passou de R$ 12,1 bilhões para R$ 2,3 bilhões, uma queda de mais de 80%.
O financiamento estrangeiro também diminuiu. Dados do Banco Central obtidos pela Coordenadoria de Pesquisa Jurídica e Aplicada (CPJA) da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP) com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) revelam que as operações de câmbio para remessa de doações a instituições privadas sem fins lucrativos somaram US$ 82,9 milhões em 2013. Esse número começou a cair em 2014, quando foi de US$ 67,1 milhões – queda de quase 20% -, até chegar, em 2016, a US$ 50,8 milhões – queda de quase 40% em relação a 2014.
Nem mesmo o Investimento Social Privado (IPS) passou imune a esse cenário de retrocesso. O total de recursos doados pelos institutos, fundações e empresas associados ao GIFE para terceiros passou de R$ 895 milhões, em 2014, para R$ 595 milhões, em 2016, uma redução de mais de 30%. O investimento total do setor, incluindo programas e ações próprias, caiu 16% em 2016 em comparação com o ano anterior. O dado de 2016, de R$ 2,9 bilhões, é o menor da série desde 2009. Os números são do “Censo GIFE 2016”.
Por outro lado, o mesmo estudo revela que 78% dos investidores sociais disseram que pretendem manter ou aumentar os níveis de apoio às OSCs, além de haver aumentado também, de 21% para 35%, o número de instituições privadas que apoiam organizações da sociedade civil pelo entendimento de que é parte da finalidade do investimento social privado contribuir para o fortalecimento e sustentabilidade do campo.
Nesse sentido, a coordenadora de advocacy do GIFE Aline Viotto aponta para o dado do GIFE + BISC (“Censo GIFE 2016” + “Benchmarking do Investimento Social Corporativo – BISC”) para ilustrar o potencial de recursos existentes na sociedade – em 2016 foram investidos cerca de R$ 3,8 bilhões – e destaca o potencial de mobilização do ISP em comparação à transferência de recursos públicos às OSCs no mesmo ano. “Essa é uma parcela da sociedade civil. Ainda existem indivíduos que podem contribuir com as causas de interesse público e com as OSCs”, observa.
Incentivos fiscais
Resultados preliminares de uma pesquisa em curso na CPJA da FGV DIREITO SP apontam para um retrato brasileiro não muito otimista.
A utilização dos incentivos fiscais para doações a causas de interesse público no Brasil ainda é bastante restrita. Eduardo Pannunzio, pesquisador da FGV DIREITO SP, aponta como uma das razões o desconhecimento. “Boa parte dos indivíduos que recolhem imposto de renda e poderia destinar uma parte desse imposto na forma de doação para organizações e projetos de interesse público, muitas vezes, não sabe dessa possibilidade ou desconhece os mecanismos para operacionalizar essa iniciativa e acaba não utilizando o beneficio”, explica.
Um segundo problema apontado pelo pesquisador está na restrição a projetos previamente chancelados pelo governo (como aqueles da Lei Rouanet) ou a fundos públicos das causas beneficiadas pelo mecanismo, o que restringe o benefício a determinadas parcelas do universo da sociedade civil organizada. “Não é qualquer doação que pode ser objeto de incentivo fiscal. Apenas causas específicas, sobretudo nas áreas da infância e adolescência, cultura e esporte e, mais recentemente, na área de pessoas com deficiência ou em tratamento contra o câncer, podem usufruir do incentivo. Outras áreas de interesse público tão relevantes quanto essas como proteção dos direitos humanos ou do meio ambiente, entre outras, não contam com o benefício.”
Nos incentivos temáticos o valor doado não é deduzido da base de cálculo, mas descontado (até certo limite) do próprio valor do imposto a pagar. O resultado é que, em muitos casos, o contribuinte consegue compensar integralmente o valor doado, não precisando desembolsar qualquer quantia adicional àquela que já pagaria ao fisco.
Nesse contexto, era de se esperar que os contribuintes fizessem largo uso dos incentivos existentes. Novamente, porém, não é o que se verifica na realidade, como aponta a pesquisa da CPJA.
Um dos gargalos está no acesso ao mecanismo. Em 2015, por exemplo, foram 27,5 milhões de contribuintes pessoa física do Imposto de Renda (IR). Nem todos, contudo, têm acesso aos incentivos fiscais. O benefício é restrito àqueles que declararam renda pelo modelo “completo” (em contraste ao “simplificado”), totalizando 11,4 milhões de contribuintes.
Segundo estimativas da mesma pesquisa, em um cenário ideal no qual todo esse grupo utilizasse plenamente os incentivos disponíveis, cerca de R$ 7,6 bilhões seriam destinados a projetos ou fundos de interesse público. Porém, apenas 51,8 mil contribuintes (0,45% do potencial) fizeram uso dos mecanismos naquele ano, doando um total de R$ 78,6 milhões (1,04% do potencial), conforme dados obtidos por meio da LAI.
“O mesmo ocorre do lado das empresas porque a legislação brasileira permite doações incentivadas apenas por aquelas empresas que são tributadas pelo regime de lucro real, que corresponde a uma minoria, já que a maioria acaba adotando o regime de lucro presumido”, explica Eduardo.
Dados como esses sugerem que os incentivos fiscais, na forma como estão estruturados e funcionam atualmente, podem ser relevantes para assegurar recursos para as áreas por eles contempladas. No entanto, têm um desempenho claramente insatisfatório como instrumentos para alavancar a cultura de doação no país e garantir o desenvolvimento institucional das organizações no longo prazo e de maneira permanente.
Aperfeiçoar os incentivos existentes, bem como explorar outras formas de incentivo que não aquelas baseadas no IR, a fim de que também os cidadãos que não são contribuintes do imposto – a maioria da população brasileira – contem com estímulos para doar, são caminhos apontados para superação dos desafios e efetivo aprimoramento do ambiente legal em prol do fortalecimento da atuação da sociedade civil.
Marco Bancário da Doação
Outro exemplo de mecanismo que pode contribuir para avanços de ordem legislativa, jurídica, e normativa no sentido de um ambiente mais favorável à doação é o Marco Bancário da Doação.
De autoria da Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR), o projeto, cujo objetivo é incluir na legislação brasileira a doação como uma forma de transação financeira, foi um dos selecionados na primeira edição do Fundo BIS.
O Fundo BIS lançou em 2017 seu primeiro edital, a fim de fomentar a cultura de doação no país, bem como ampliar o volume de recursos financeiros doados no Brasil. Para estruturação e realização da primeira edição da iniciativa, o Fundo foi incubado pelo GIFE e recebeu aportes do Instituto Arapyaú, do Instituto C&A, do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) e do Instituto Cyrela.
João Paulo Vergueiro, diretor executivo da ABCR, explica que o sistema financeiro ainda não diferencia a doação de um pagamento, o que acarreta uma série de entraves para as organizações da sociedade civil. “Hoje, se a organização deseja incentivar as doações via boleto bancário, por exemplo, precisa emitir um boleto de pagamento e encontra dificuldades, pois essa ferramenta não permite deixar campos abertos para que a pessoa doe quanto e quando quiser.”
A ideia do Marco surgiu a partir da mobilização das próprias organizações da sociedade civil, que procuraram a ABCR relatando os problemas que estavam enfrentando com o sistema financeiro em todo o país como aumento das tarifas de boletos, obrigatoriedade de autorizar o débito recorrente da doação na própria agência bancária, impossibilidade de abertura de contas, entre outros.
A ABCR então formou um grupo de trabalho com essas organizações e tentou inicialmente negociar as demandas do setor com a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN) e o Banco Central. “Como tivemos as portas fechadas pelas instituições do setor financeiro, optamos por construir a nossa própria proposta de um marco que regulamente a doação dentro do sistema financeiro. Com o apoio das próprias organizações e investidores sociais, bem como de iniciativas como o Fundo BIS, construímos a proposta com tudo o que diz respeito à doação como transação financeira: no cartão de crédito, boleto, débito em conta, transferência bancária, etc.”, conta o diretor.
A proposta já passou por um processo de consulta pública junto às organizações do campo. O grupo está atuando em Brasília para identificar apoios junto ao poder legislativo para que a proposta seja formalmente apresentada para apreciação dos senadores e deputados e transformada em lei.
“Se aprovado, o Marco Bancário da Doação trará segurança jurídica para o setor, proporcionando que a nossa receita principal – a doação – seja não somente reconhecida pelo sistema financeiro, mas também que este desenvolva produtos e serviços específicos para facilitar a gestão e a captação das doações por parte das organizações da sociedade civil”, observa João Paulo.
Projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”
A websérie “Sustenta OSC” faz parte do projeto “Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil”, uma realização da CPJA da FGV DIREITO SP em parceria com o Ipea e apoio de Fundação Lemann, Instituto Arapyaú, Instituto C&A e União Europeia.
Por meio de produção de conhecimento, comunicação, articulação e incidência para alterações normativas e regulatórias que ampliem as condições para a sustentabilidade política e econômica das OSCs, o projeto visa construir um ambiente legal, jurídico e institucional saudável para a atuação das organizações da sociedade civil.
A atuação da iniciativa se dá sobre quatro eixos temáticos: Doação, Fundos Patrimoniais, ITCMD e Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC).
Dentre as atividades realizadas ao longo de 2017, está a abertura de espaços de escuta ativa sobre os temas por meio da criação de um grupo de discussão, de uma consulta pública e de reuniões do “OSC em Pauta”, espaço de debates promovido pela FGV DIREITO SP. Além disso, um cuidadoso acompanhamento da movimentação legislativa foi efetuado ao longo do ano, cujas proposições podem ser conhecidas no site do projeto.
A disseminação de conteúdos relacionados aos temas, seja por meio do boletim quinzenal dedicado ao projeto, do site ou dos eventos mencionados, é um dos pilares importantes do trabalho. Essas ações, juntamente com pesquisas que estão sendo realizadas pela FGV DIREITO SP, são fundamentais para embasar e dar consistência às ações de incidência que devem marcar o projeto ao longo dos próximos anos.
Próximos episódios
Os próximos episódios da websérie “Sustenta OSC” serão lançados toda segunda-feira no canal do GIFE no Youtube. Os vídeos abordam os seguintes temas: Importância de doar; Cultura de doação; Confiança e transparência nas organizações da sociedade civil; Tributação da doação no Brasil; Incentivos fiscais; Fundos patrimoniais; Atuação Conjunta; e Organizações da Sociedade Civil. Acompanhe!
Fonte: gife.org.br