O papel do investimento social na mitigação das mudanças climáticas

Um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima (COP 26), realizada entre o final de outubro e começo de novembro, em Glasgow, na Escócia, foi a criação da Aliança Financeira de Glasgow para as Emissões Zero, cujos membros afirmaram estar comprometidos a alinhar 130 trilhões de dólares com as metas climáticas estabelecidas no Acordo de Paris. 

A deliberação acontece em um momento de atenção global para a agenda do clima, uma vez que o planeta tem se distanciado cada vez mais dos 2ºC determinados por especialistas como a temperatura máxima de aquecimento da superfície para evitar degradações generalizadas e eventos climáticos extremos. 

A complexidade da pauta demanda esforços coordenados de diferentes setores – poder público, iniciativa privada e sociedade civil -, que devem investir na produção e divulgação de conhecimento acessível sobre as mudanças climáticas e ações de mitigação e adaptação, bem como na criação de novas soluções.

Confira, a seguir, entrevista com Mariana Nicoletti, gerente de baixo carbono e resiliência do ICLEI América do Sul, sobre as principais discussões da COP 26.

redeGIFE: De acordo com o Adaptation Gap Report 2021, relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), a estimativa do custo das mudanças climáticas em países em desenvolvimento está, atualmente, mais alta do que estudos anteriores. Assim, qual é a importância e o potencial de uma iniciativa de investimento privado como a Aliança Financeira de Glasgow para as Emissões Zero

Mariana: Adaptation Gap Report, lançado antes da COP, foi bastante importante para reforçar a velocidade que precisamos assumir nessa próxima década em relação à transição climática e energética, o que tem a ver com custo. Quanto mais rápida tiver que ser a transição, maior tende a ser o custo. Além disso, conforme vamos implementando medidas que já estão mais prontas com um custo menor e que geram retorno sobre o investimento no prazo mais curto, temos que avançar em outros grupos de medidas que requer um investimento maior e com retorno de mais longo prazo. Nesse sentido, é muito importante o anúncio da Aliança dos 130 trilhões de dólares feito por 450 empresas e instituições financeiras responsáveis por aproximadamente 40% dos ativos financeiros mundiais. Esse grupo tem a capacidade de mobilizar e direcionar recursos para a economia verde, de baixo carbono e resiliente. 

redeGIFE: O relatório do PNUMA afirma que cerca de 79% dos países adotaram pelo menos um instrumento de planejamento de adaptação em nível nacional – plano, estratégia, política ou lei -, o que representa um aumento de 7% em comparação a 2020. O que significa realizar movimentos para se adaptar às mudanças climáticas? 

Mariana: Temos acompanhado um aumento da relevância e visibilidade do tema das adaptações às mudanças climáticas, tanto no âmbito internacional, como nas esferas nacionais e subnacionais. É uma agenda que só tende a crescer nos próximos anos e que tem duas principais perspectivas que ficaram claras nessa conferência. A primeira delas relacionada ao fortalecimento de capacidades adaptativas e de resiliência, ou seja, uma abordagem voltada a, de fato, construir a capacidade de absorver o impacto e sofrer menos danos e perdas com os eventos climáticos extremos. A outra abordagem tem a ver com apoio aos países e comunidades que já sofreram e continuarão sofrendo os impactos das mudanças do clima, como as pequenas ilhas, os países-ilhas e as ilhas do Pacífico. 

redeGIFE: Quais são exemplos de iniciativas de adaptação a mudanças climáticas? 

Mariana: No Brasil, Santos foi o primeiro município a ter seu plano de adaptação e vemos outros municípios e capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, elaborando essas políticas públicas. Ao mesmo tempo, há ações importantes, como o ProAdapta, um projeto financiado pela GIZ e coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente que tem como objetivo organizar e estruturar agendas de adaptação, implementar projetos em comunidades em situação de vulnerabilidade e sistematizar conhecimento. O próximo passo é que essas iniciativas sejam integradas para que haja uma sistematização e intercâmbio de conhecimento. Há uma frustração de não ter sido criado um fundo específico para perdas e danos na COP, o que era um pleito de países em situações mais graves de vulnerabilidade, mas vimos promessas de dobrar o investimento para adaptação na próxima década.

redeGIFE: Novos acordos e declarações também foram criados durante a COP 26, como a Declaração de Transição do Carvão Global para Energia Limpa – com 23 países se comprometendo com o fim do carvão pela primeira vez. Mesmo que alguns países que usam essa fonte de energia tenham ficado de fora do acordo, ainda é possível confirmar que houve um avanço nesse compromisso? 

Mariana: A questão do abandono dos combustíveis fósseis foi um tema de bastante pressão por parte da sociedade civil. Há alguma frustração em relação a isso porque no Pacto Climático, documento criado a partir da COP, não houve uma afirmação taxativa em relação ao fim dos subsídios aos combustíveis fósseis. Por outro lado, foi a primeira vez que o tema teve menção no documento final da conferência. Também houve um debate sobre os países mais dependentes de carvão, China e Índia, não se comprometerem com o abandono total dessa fonte energética, mas indicando, pelo menos, uma transição gradativa. Então é como um duplo movimento: os investimentos em combustíveis fósseis tendem a seguir ativos nos próximos anos, mas, aos poucos, vêm sendo reduzidos e espera-se que um recurso cada vez maior seja direcionado para energia renovável, soluções e tecnologias baseadas na natureza e voltadas à economia de baixo carbono.

redeGIFE: Como organizações do investimento social privado que não têm o clima como agenda prioritária podem contribuir e se engajar com a pauta? 

Mariana: O clima é uma agenda hub, então, tem se defendido cada vez mais a aplicação da lente climática nas diferentes políticas públicas setoriais e também nas múltiplas áreas de trabalho das empresas. O investimento social privado tem um papel bastante importante, pois pode viabilizar que novas tecnologias sejam desenvolvidas e testadas, no sentido de fomentar a inovação e o empreendedorismo nessa agenda. Sabemos que para mitigação e, especialmente, adaptação climática, ainda há uma lacuna de capacidades técnicas e institucionais dos governos e do setor privado para uma atuação consistente. Então, o apoio técnico customizado, voltado às realidades de cada território, é muito importante e o investimento social privado traz, em geral, esse apoio para organizações e empreendedores que atuam na ponta, o que é muito relevante. 

redeGIFE: Quais são alguns caminhos e estratégias para que esses os acordos e tratados criados na Conferência de fato sejam respeitados a partir de agora? 

Mariana: Daqui para frente, precisamos entender os meios de implementação não só no sentido de recursos financeiros. Algumas dessas declarações já saíram junto com um compromisso de investimento. Além disso, há uma grande preocupação sobre o monitoramento desses esforços e da transparência em relação a eles e a seus resultados, questão que permeou a COP como um todo. O direcionamento de recursos é algo que teremos que monitorar. Uma coisa é se comprometer a colocar o recurso na mesa, outra coisa é o conjunto de mecanismos de financiamento. Ou seja, por quais canais esse recurso poderá ser acessado? Quem pode acessar? Tem que ser via governos nacionais ou é um acesso direto? Que tipo de projetos devem ser apresentados? Sabemos que muitas vezes a barreira não está na disponibilidade de recursos, mas sim em elaborar e apresentar projetos robustos e consistentes que sejam financiáveis. Então, de novo, entra o papel da assistência e do apoio técnico para elaboração desses projetos, especialmente para organizações da sociedade civil e governos locais. 

redeGIFE: Segundo o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde, no Brasil existem 613 conflitos envolvendo racismo ambiental, expressão recentemente rejeitada pelo governo federal. Falta compreensão sobre como a agenda climática conecta-se a diversas outras agendas sociais desafiadoras no país? 

Mariana: Reconhecer o racismo ambiental no Brasil é uma questão essencialmente política no sentido de, de alguma forma, negar um problema que é inegável. O racismo ambiental acontece em todas as esferas. Nos centros urbanos, com populações de menor renda e em situações de vulnerabilidade expulsas de certos ambientes e bairros da cidade, e também no campo, com histórias recentes de populações indígenas sendo expulsas de suas terras e ameaçadas fisicamente.

Isso significa que precisamos reconhecer e nomear o problema, pois, dessa forma, deixa de ser abstrato. Para promover esse olhar, precisamos de educação e a mídia tem um papel fundamental. Mas também é necessário dar visibilidade à voz dessas populações em espaços de participação social e nas políticas públicas. Assim, os governos estaduais e municipais são atores fundamentais. Vimos acontecer e ganhar força a Aliança dos Governadores na Amazônia – que, de certa forma, vem fazendo uma resistência em relação ao governo federal – e também estamos acompanhando governos subnacionais trazendo iniciativas inspiradoras no sentido de reconhecer o problema, investir na concretização dos direitos dessas populações e trazer à tona essa agenda de justiça climática, que foi a tônica dessa COP. O documento final da conferência, o Pacto de Glasgow, traz a questão dos direitos humanos, gênero, juventude e também justiça climática ao longo do texto, o que não aconteceu nas últimas conferências. 

redeGIFE: Considerando que outro compromisso de destaque da COP foi a Declaração para o uso de florestas e terras, assinada por 110 países, qual é a relação entre preservação e povos da floresta? 

Mariana: A pauta do racismo ambiental está totalmente relacionada à proteção das florestas, ao combate ao desmatamento e temos que tomar muito cuidado para as coisas não acontecerem em vetores opostos, já que, para alguns, proteção das florestas significa a exclusão desses povos de suas terras ou uma dificuldade maior ainda de se manterem nelas. Deve-se reconhecer quem vem, de fato, sendo o guardião das florestas e criando a base da chamada bioeconomia são essas populações. A bioeconomia precisa admitir as soluções, os sistemas produtivos e os meios de vida que valorizam e são integrados à floresta e à biodiversidade para que possamos ter uma justiça climática. 

Por: Gife

Fonte: gife.org.br

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