O Brasil, no final do ano passado, contabilizava sinais de pujanças econômicas. Os economistas projetavam um crescimento de 2,3% do PIB, as bolsas de valores chegaram a bater 112,5 mil pontos e a taxa básica de juros, SELIC, caiu de 6,5% para 4,5% em menos de um ano, demonstrando a retração da necessidade do financiamento da dívida pública. Além disso, o lucro das empresas brasileiras com ações na Bolsa vinha de um crescimento de 42%, o que representou cerca de R$ 177,5 bilhões.
Os quatro maiores bancos do Brasil apresentaram performance similar, uma vez que os lucros cresceram 18% e os ganhos alcançaram R$ 81,5 bilhões. A taxa de desemprego vinha, ainda que timidamente, caindo, de 12,3% em 2018, para 11,9% em 2019.
Contudo, não é menos verdade que o movimento capitalista, que estava produzindo tamanha riqueza, também estava trazendo algo nocivo. Não apenas em decorrência das atividades brasileiras, mas do mundo corporativo num cenário global, em especial contra o meio ambiente, por meio das mutações climáticas que ceifaram a vida de muitas pessoas em catástrofes e acidentes naturais. No Brasil, houve os casos Mariana, Brumadinho e Angra dos Reis. No mundo, vimos inundações que mataram centenas de pessoas na Índia, o maior ciclone em 11 anos no Moçambique, o maior terremoto já visto na Albânia, um tufão Hagibis com ventos de até 200 km/h no Japão e o furacão Dorian no Caribe, entre tantos outros.
Não faltaram explorações, em muitos casos, de trabalhadores. Alguns inclusive vítimas de escravidão (ou condição análoga), cujos atos foram debelados pela força policial. Muitos filhos viveram como órfãos, com seus pais workaholics consumidos pelo trabalho, dando margem à terceirização da educação doméstica e até do carinho parental. Famílias foram separadas pela rotina perdulária, não foram poucos os casamentos desmantelados, houve desprezo pelas causas sociais e muito mais. Vivia-se um conflito velado em prol do capitalismo.
De repente, o mundo desabou com a chegada de um vírus dizimador de vidas, que obrigou o fechamento da “máquina” produtiva, derrubando a economia mundial. Engaiolou as pessoas dentro de casa, obrigando-as a fazer algo que a vida já havia lhes oferecido, mas a embriaguez da rotina estava ofuscando suas visões, como deleitar a família e encontrar uma matize diferente ao bem viver.
É fato que nem todos puderam e podem ficar em casa ao lado da família, como os heroicos profissionais da saúde e também aqueles que integram o rol dos desvalidos – que, no Brasil, somam mais de 13,5 milhões. Muito menos trabalhar por meio de recursos da internet, pois sequer computador possuem, quanto menos os 20 milhões que já estavam sem emprego. Porém, não existe margem de dúvida que toda essa mudança está movimentando o mundo, que ainda chora pelas perdas de vidas, mas ao mesmo tempo se empodera com experiências construtoras para uma rotina diferente. E como dizia Francis Bacon, “não se aprende bem a não ser pela experiência”.
Este vírus está mostrando ao mundo que a equação de 16 horas na rua contra 8 em casa (incluindo o sono necessário), pode trazer riqueza – mas não harmonia, convívio familiar e felicidade. E, infelizmente, a letalidade é que está vaticinando este alerta por via oblíqua.
É chegada a hora, então, de desbravar um novo normal; não aquele alardeado em simples protocolos sanitários, como o uso de máscaras, assepsia, evitar aglomeração. Mas uma ampla mudança do viver, que não cabe apenas às pessoas, mas notadamente ao Estado, às empresas e às sociedades civis organizadas integrantes do Terceiro Setor.
Neste contexto, a reflexão a seguir busca encontrar respostas sobre o “novo normal” a que as organizações sociais estarão sujeitas, sob os eixos econômico, social e estrutural.
Econômico
A Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR) trouxe ao mercado uma importante ferramenta que funciona como uma régua mensuradora do volume de recursos doados pela iniciativa privada ao cuidado/combate e proteção em relação ao coronavírus.
A ferramenta aponta que a crise atual sensibilizou pessoas e empresas dos mais diversos segmentos, conforme se observa nas tabelas da página seguinte, cujo total de doações ruma para R$ 6 bilhões, realizadas em pouco mais de dois meses.
Esta métrica pode, em função de derivar de informações coletadas da internet e/ou prestadas pelos próprios doadores, até estar subestimada, pois muitas iniciativas preferem o anonimato à publicidade.
Contudo, o que vale para a reflexão não é o valor propriamente registrado, mas sim o conceito de solidariedade, jamais visto com tamanho calibre econômico. Isto prova que, no atual cenário, a vida tem preço. Sem o socorro econômico, tanto da esfera pública como da privada, o número de pessoas que perderam a vida seguramente já teria ultrapassado os atuais.
Sabemos que a pandemia é passageira, visto que muitos países asiáticos e europeus viveram dias com milhares de óbitos e já retomaram a vida cotidiana, apesar da cautela. No Brasil, não deve ser diferente.
Com a diminuição das vítimas de coronavírus, haverá um arrefecimento de recursos destinados aos seus reflexos, tanto do orçamento público (tido como de guerra), como das doações privadas, sendo que a pandemia deixará de ter um “caixa eletrônico”. Porém, o conceito solidário é que não pode acabar.
O Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS) divulgou em uma pesquisa que apenas 26% dos doadores acham as ONGs confiáveis. Outro estudo apontou que sete em cada dez pessoas relatam ter doado dinheiro, porém 58% destinaram suas doações para organizações religiosas em detrimento das demais ONGs, laicas. Isso demonstra que as pessoas acreditam mais no trabalho liderado pelos homens de fé do que aqueles que voluntariamente trabalham em prol do bem, sem a batina.
Estes estudos apontam que o Terceiro Setor, sob o ponto de vista econômico, não pode deixar que haja um desencorajamento dos doadores, pós-pandemia, mas, sim, que seja perpetrada a concepção da doação. Entretanto, o ponto nuclear que sustenta a doação, depois da causa, é a certeza de que o recurso será gerido com ampla retidão em prol das causas vítimas das desigualdades sociais, obedecendo rigoroso critério contábil, econômico e fiscal – ou seja, em conformidade com a lei.
O Terceiro Setor também deve mostrar que, assim como a Covid-19, a cada ano morre, no Brasil, mais de um milhão de pessoas vítimas de outras causas. Muitas delas são combatidas pelas organizações sociais de maneira mais silenciosa, como mostra o gráfico divulgado pela Secretaria de Vigilância em Saúde.
Não são poucas as organizações beneficentes focadas em saúde, ou seja, que se dedicam às cinco maiores causas de óbito no país. Outras tantas direcionam seus fins para combater a violência, sexta maior causa de morte no país. Sem falar naquelas que tratam pessoas vítimas de alcoolismo, que transforma o vício em doença – cirrose, décima principal causa de morte -, além daquelas que trabalham pela educação, cujo magistério minora a violência, o racismo, a desigualdade, produz a integração ao mercado do trabalho e muito mais.
Assim, o “novo normal” do Terceiro Setor, sob o aspecto econômico, é a resiliência perante doadores e agentes públicos — que muitas vezes repassam migalhas às organizações sociais — sobre causas tão nocivas quanto o coronavírus.
De outro lado, a fidelização não deriva apenas da causa, mas sim do melhor extrato de transparência no combate das mazelas e na eficiência da governança social. E, principalmente, na busca do maior envolvimento de todos os atores (stakeholders) no processo, que somados farão a construção de uma marca transformadora de vidas, capaz de manter em funcionamento o “caixa eletrônico” da doação.
Social
A qualificação de organização beneficente assistencialista é conferida a quem promove: (a) o atendimento dirigido às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e pessoal; (b) o fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações de usuários e para formação e capacitação de lideranças, dirigidos ao público da política de assistência social; (c) a defesa e garantia de direitos. A mesma qualificação é conferida para a organização educacional que alfabetiza e forma de maneira regular quem experimenta vulneração social. As instituições de saúde são qualificadas mediante o atendimento de pessoas egressas do Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, que não reúnem condições de bancar um sistema privado de saúde.
É importante destacar que essas finalidades imbricam direta ou indiretamente nas 169 metas e nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pelos 193 Estados-membros das Nações Unidas, entre eles o Brasil.
Qualquer que seja a finalidade social das organizações beneficentes, elas estão à serviço da dizimação/minoração das desigualdades e da transformação do planeta, o que eleva sua responsabilidade.
Contudo, o coronavírus não deixou ilesas as instituições sociais obstinadas em cumprir os ODS, visto que muitas tiveram de interromper o atendimento, ainda que parcialmente, devido ao distanciamento e isolamento social. Viu-se, então, o Estado promover o financiamento aos desvalidos, via abono emergencial, a um custo de mais de R$ 50 bilhões, beneficiando mais de 24,5 milhões de pessoas. As famílias, por sua vez, deixaram de confiar o serviço de tutela aos filhos, idosos, doentes, PCDs e outros. Criou-se, então, uma mudança de cultura social.
Já o Estado está vendo que não adianta investir maciçamente em infraestrutura – como aquela da Copa do Mundo de futebol, que consumiu milhões do caixa público – em detrimento de pessoas. Existem hoje, no Brasil, 13,5 milhões de pessoas vivendo com menos de USD 1,9 por dia, ou seja, em extrema pobreza, sem qualquer condição sanitária. Quando há uma pandemia como a que estamos vivendo, elas sequer têm um mero aparelho respiratório para salvar sua vida. O novo normal social ao Estado deve estar pautado no enfrentamento das causas que visam a prevenção e não a reação, pois ela custa vidas.
Para as famílias assistidas, o novo normal social seguramente derivará do que estão atualmente experimentando, ou seja, do exercício de novas façanhas. Seja adequando a coabitação por meio de um reinvento doméstico e profissional, que pode representar um novo normal para elas, e provocar uma mudança perene.
Já o Terceiro Setor, tido como uma cegonha do bem estar, também terá de se reinventar e buscar o novo normal social. Será necessário mudar muitas vezes até a forma de prestar os serviços sociais. Por exemplo ,em vez de acolher, capacitar os beneficiários e suas famílias a produzir, ou seja, educar para não faltar. Levar o social para dentro dos lares dos desvalidos, e não esperar que eles venham buscar, cuja saga pode propiciar uma nova descoberta de produzir o bem.
Outra missão do Terceiro Setor diante do novo normal social é a eterna e beligerante vigilância do orçamento público, pois não existe mais margem para uma Santa Casa Filantrópica, por exemplo, ficar à mercê do Estado, à espera de um respirador ou repasse de recursos para a sua aquisição, enquanto pessoas perdem vidas por desperdício da poupança pública em época de pujança econômica. O governo e/ou o gestor público não é o dono do cofre, mas o depositário dele, de modo que a ingerência do recurso público não pode ser relegada, mas sim suscitada até em raias judiciais, mediante provocação do Ministério Público. O coronavírus veio ceifar o refestelar daqueles que esperam pela mera sensibilidade do gestor público.
Enfim, o novo normal social do Terceiro Setor reclama “atitude” com relação a todos os atores, desde o Estado até os próprios usuários dos programas sociais.
Estrutural
Entendemos que, num futuro próximo, haverá regras sanitárias não só protocolares, mas punitivas, como aquelas relacionadas à acessibilidade, fruto dos reflexos da atual pandemia. Elas virão para ficar e serão direcionadas especialmente para as unidades de atendimento. Muito embora não haja lei com previsão de penalidades é sempre bom lembrar que o Código Civil já prevê a responsabilização a quem agir por ação ou omissão e causar dano a outrem: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”.
O novo normal estrutural nos remete a fazer dois exercícios: (i) uma análise das regras protocolares fixadas, por exemplo, pelo município de São Paulo; (ii) quais regras podem e devem se tornar perenes para as organizações sociais. Para tanto, o quadro na página seguinte funciona não apenas como reflexão, mas como um convite para o Terceiro Setor. Os itens que podem ter uma implantação continuada estão assinalados.
Desta análise tiramos que, da mesma forma que existem regras de conformidade com as leis (compliance) para a governança corporativa, o novo normal estrutural do Terceiro Setor reclama, desde já, a implantação daquilo que hoje é mero protocolo, em regras de conduta estrutural perenes. Em primeiro lugar para preservar vidas contra novas epidemias, em segundo, para prevenir responsabilidades, evitando que a inércia possa refletir em qualquer reclamação danosa.
Defendemos, então, que seja inaugurado um novo compliance pelas organizações sociais: o sanitário. E que ele não fique em protocolos, mas que seja incluído no regimento interno, nos contratos de prestação de serviços (sociais, educacionais e de saúde), nas estruturas físicas e até mesmo nas relações com o Estado, visando implementar um novo normal estrutural.
Enfim, o Novo Normal do Terceiro Setor impõe vários desafios que não se esgotam aqui, já que as relações trabalhistas, com o Estado, com as autoridades sanitárias, com a segurança e a medicina do trabalho, e a prestação de contas aos órgãos públicos, entre outras, também carecem de reflexão para o novo momento que o planeta experimenta. Contudo, ainda que as causas sejam antigas, a pandemia nos empurrou para um recomeço, visando que o velho se transforme e debute novamente como o “novo normal”!
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