A importância do papel das cidades no cenário contemporâneo é inegável, dada a intensidade e a velocidade do processo de urbanização no Brasil e no mundo. Apesar das cidades representarem apenas 2% da superfície da Terra, atualmente, a maior parte da população mundial vive em áreas urbanas. No Brasil, essa parcela soma 85%.
Pensando nisso, o GIFE acaba de lançar o guia O que o investimento social privado pode fazer por Cidades Sustentáveis? A iniciativa tem como finalidade chamar a atenção do Investimento Social Privado (ISP) para a importância da agenda e apoiar investidores que tenham interesse em iniciar ou fortalecer sua atuação no tema, disponibilizando insumos e inspirando formas inovadoras e relevantes de intervir na realidade social e ambiental para melhorar a qualidade de vida nas cidades brasileiras.
A publicação oferece um panorama sobre o assunto com conceitos e informações sobre contexto e tendências, bem como desafios e caminhos para atuação do ISP na agenda. Os conteúdos foram produzidos a partir de entrevistas, pesquisa bibliográfica e contribuições de especialistas no assunto. A iniciativa acompanha um vídeo sobre o tema.
A iniciativa faz parte da série “O que o ISP pode fazer por…?”, que visa diversificar e expandir a atuação do investimento social privado brasileiro, estimulando a reflexão acerca da contribuição do setor para a superação de alguns dos desafios mais complexos da atualidade.
O primeiro tema da série, Cidades Sustentáveis, é uma realização do GIFE copromovida por Fundação Tide Setubal, Fundo Socioambiental Casa e Programa Cidades Sustentáveis, da Rede Nossa São Paulo.
José Marcelo Zacchi, secretário-geral do GIFE, observa que o projeto se relaciona com uma das missões da instituição que é fomentar a expansão e a diversificação do campo. “Isso inclui uma série de tarefas relacionadas a boas práticas no setor, nas áreas de governança, grantmaking, avaliação, etc., e também a máxima interação com a agenda pública. A série nos ajuda a aprofundar esta última no sentido apontar caminhos para estabelecer essa interface, algo que é central e sensível no atual momento do país.”
Contexto
Estudos da Fundação Getulio Vargas (FGV) mostram que entre 2001 e 2030, a área urbana ocupada triplicará. Até 2050, cerca de 70% da população mundial estará vivendo em áreas urbanas, sendo que 90% desse crescimento ocorrerá em países de economia emergente e em desenvolvimento. Essas pesquisas também apontam que 80% do Produto Interno Bruto (PIB) de um país, bem como 71 a 76% das emissões de gás carbônico vêm das cidades.
Tais dinâmicas colocam o espaço urbano no centro do debate sobre desenvolvimento sustentável. A agenda é dedicada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, além de aparecer de modo transversal em diversos objetivos da Agenda 2030, da Organização das Nações Unidas (ONU), como nas ações voltadas ao fornecimento de água (ODS 6) e de infraestrutura (ODS 9), o que demonstra que as relações e práticas estabelecidas nas cidades são fundamentais para o alcance de uma sociedade mais justa, responsável e sustentável.
Se, por um lado, as cidades estão associadas ao crescimento econômico e ao bem-estar, por outro, elas também são marcadas por desigualdades socioterritoriais extremas. Meio ambiente, habitação e saneamento, mobilidade e periferias são apontados pela publicação como temas relevantes no debate de cidades sustentáveis.
Dessa forma, de acordo com o guia, pensar as cidades em uma perspectiva sustentável inclui: 1) Urbanização mais harmonizada aos sistemas naturais e seus limites; 2) Inclusão política e econômica dos habitantes (acesso a alimentação, água potável, habitação, transporte, saneamento, saúde, educação, mercado de trabalho, informação, direitos eleitorais, etc.); e 3) Diversidade sociocultural.
Principais desafios
O estudo ressalta a importância do domínio das questões sociais e ambientais presentes no debate sobre cidades sustentáveis para pensar caminhos de atuação legítimos e alinhados aos problemas reais da sociedade.
A partir do que vem sendo mais enfatizado por especialistas nos diálogos atuais em torno do tema, o guia aponta como principais desafios: produção e consumo de recursos; relações sociais, participação social e planejamento urbano; dinâmicas institucionais; organização espacial e circulação na cidade; habitação; e mobilidade.
Para Neca Setubal, presidente do conselho de governança do GIFE e da Fundação Tide Setubal, o tema é bastante amplo e o guia traz recortes palpáveis.
“As principais questões do mundo hoje estão nas grandes cidades. Em São Paulo, temos dois milhões de pessoas vivendo nas periferias em situação de grande precariedade. Se pensarmos nas chuvas das últimas semanas, os mais atingidos são as populações que vivem nessas regiões de alta vulnerabilidade. Sem dúvida temos que falar de cidades sustentáveis e de tudo o que envolve o tema e esse material nos oferece a concretude que o setor precisa para entender como atuar nessa agenda.”
Jorge Abrahão, coordenador-geral do Programa Cidades Sustentáveis – uma realização da Rede Nossa São Paulo, da Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis e do Instituto Ethos -, chama atenção para o elemento da participação social.
“Estamos sempre olhando com o espelho retrovisor. Raramente exercemos nossa capacidade de antever os problemas e demoramos muito para dar respostas. Um exemplo é o atual modelo de gestão de cidades, um modelo datado, não temos mais como governar dessa maneira. Mesmo assim, ainda há uma resistência muito grande para formas de governança que ampliem minimamente a participação da sociedade. Como podemos ser mais incisivos nesse processo entendendo ser uma demanda urgente para construir políticas mais perenes? Há muitos exemplos positivos e eu creio que o ISP pode dar uma atenção especial a essa questão.”
Caminho de atuação do ISP na agenda
Ao lado de outros atores – como o poder público, a sociedade civil e a academia –, o ISP pode ter um papel estratégico na agenda em diversos níveis. Sua atuação pode ser mais focada no assunto – por exemplo, tendo cidades sustentáveis como uma linha temática de investimento – ou se dar de modo mais transversal a outros temas e iniciativas já desenvolvidos pelas organizações.
A publicação destaca algumas vias possíveis de atuação do setor, que vão desde o apoio direto a grupos de base das comunidades até o fomento à produção de conhecimento e ao desenvolvimento de soluções inovadoras, passando pela influência e qualificação de políticas públicas urbanas.
De forma mais detalhada, o manual especifica quatro linhas de atuação: 1) ampliação da participação social nas cidades; 2) desenvolvimento de soluções urbanas inovadoras; 3) fomento à produção e gestão sustentável dos recursos naturais e seus resíduos; e 4) fortalecimento de iniciativas e soluções nos e dos territórios. O conteúdo do guia se aprofunda nos objetivos, ações e cases para cada uma das linhas de atuação.
Neca menciona uma das experiências da Fundação Tide Setubal, que atua com foco no desenvolvimento territorial na periferia de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. A Fundação articulou junto às comunidades da região um plano de bairro. O documento foi contemplado pelo plano diretor da cidade e o recurso já está na subprefeitura responsável aguardando liberação.
“Esse é um bom exemplo de como articular o micro e o macro e de como pensar práticas democráticas de participação que garantam o protagonismo dos territórios na formulação de políticas públicas”, observa.
Cristina Orpheu, diretora executiva do Fundo Socioambiental Casa, concorda que a perspectiva de fortalecimento do ator local é fundamental no processo democrático necessário para a atuação no tema de cidades sustentáveis.
“Nós defendemos que dentro da sociedade civil há um desequilíbrio no que se refere ao acesso a recursos entre organizações com mais capacidade técnica e, portanto, mais acesso, e grupos de base e movimentos com menos capacidade técnica que ficam abaixo nessa balança. E para nós, a construção dessa cidade mais justa depende de que essa balança esteja mais equilibrada e é por isso que optamos por apoiar esse lado da balança. O papel do ISP nessa agenda tem a ver com a promoção desse equilíbrio.”
O projeto
A série “O que o ISP pode fazer por…?” contempla ainda outros sete temas urgentes e relevantes da agenda pública nos quais a atuação do ISP se dá de forma ainda tímida: equidade racial, água, mudanças climáticas, direitos das mulheres, migrações e refugiados, segurança pública e gestão pública.
A estréia da iniciativa no X Congresso GIFE foi seguida de um intenso trabalho de pesquisa de conteúdo, escuta de atores referência nos temas e debates junto a interlocutores das mais diversas esferas (poder público, academia, organizações da sociedade civil, investimento social privado, entre outras) a partir da realização de workshops.
Esse trabalho resulta na produção de um vídeo e uma cartilha por tema. Todo o conhecimento e materiais produzidos serão disponibilizados no site da iniciativa.
Estão previstos para este ano o lançamento dos materiais dos demais temas da primeira rodada: equidade racial, água e mudanças climáticas. A segunda rodada – composta pelos temas direitos das mulheres, migrações e refugiados, segurança pública e gestão pública -, também será produzida em 2019.
A partir das cartilhas, uma coleção especial O que o ISP pode fazer por…? também será disponibilizada no Sinapse, a biblioteca virtual do GIFE.
Erika Sanchez, gerente de programas do GIFE, ressalta que o projeto prevê ainda uma terceira fase com outros temas da agenda pública.
Ela explica que essa produção de materiais antecede uma segunda etapa que é a de mobilização e sensibilização dos investidores para que eles passem a incorporar esse olhar da diversidade da agenda pública no momento de pensar e rever suas estratégias de atuação. “A expectativa do GIFE com a iniciativa é fomentar pontes e conexões entre atores diversos em cada um dos temas a fim de estimular a continuidade dos debates e uma atuação mais conjunta. Precisamos de múltiplos atores e soluções complementares para transformações sistêmicas”, ressalta.
Fonte: gife.org.br