De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em abril de 2020, mais de um bilhão de estudantes foram afetados pelo fechamento das escolas no mundo todo em razão da pandemia de Covid-19, com 117 países na lista de nações com instituições de ensino totalmente fechadas, incluindo o Brasil.
Esse cenário impôs uma situação complexa à educação, com uma multiplicidade de desafios de diferentes origens. Se professores tiveram que se adaptar para exercer sua profissão no ambiente online, também precisaram lidar com o desengajamento dos estudantes, a falta de conectividade – considerando que equipamentos tecnológicos e banda larga estão longe de ser uma realidade para grande parte dos lares brasileiros -, a volta do país ao Mapa da Fome, o que obrigou jovens a abandonarem temporária ou definitivamente os estudos para ajudar na renda familiar -, entre inúmeros outros fatores.
Denise Carreira, educadora popular e professora de Política Educacional da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora institucional da Ação Educativa, explica que são muitas as situações dramáticas que afetam as comunidades escolares, decorrentes da crise sanitária e de seus efeitos, associados à profunda e prolongada crise econômica que o país atravessa.
“As escolas, creches e redes de ensino devem ficar atentas ao aumento acelerado da fome, dos problemas de saúde mental e da violência doméstica impactando, principalmente, a população negra, periférica, indígena, do campo e as famílias mais pobres”, enumera.
Financiamento da educação e garantia de direitos
Um dos principais pontos de atenção para a educação em 2022 é a questão orçamentária. Segundo a nota técnica LOA 2022 – Piso Mínimo Emergencial e Ações Prioritárias para a Destinação de Emendas, da Coalizão Direitos Valem Mais, a educação conta com uma previsão orçamentária de R$ 70,5 bilhões para 2022 – contra R$ 133,6 bilhões em 2015 -, uma redução de 47,2% que tem potencial de causar “grave retrocesso social no direito à educação da população brasileira”, conforme trecho da nota.
De acordo com o documento, para impedir a deterioração da educação nacional, deve-se adotar um piso emergencial para educação no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2022) no valor mínimo de R$ 196,16 bilhões. O montante seria aplicado de forma a amenizar ou reverter a deterioração em algumas áreas do campo educacional, como mais investimentos em hospitais universitários, que viram suas demandas aumentarem durante a pandemia; novos campi, compra de equipamentos e modernização de universidades e institutos federais; investimentos para responder à metas não cumpridas do Plano Nacional de Educação (PNE); implementação do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi); entre outras medidas.
“É urgente a retomada do financiamento educacional na perspectiva equalizadora, que garanta o Custo Aluno-Qualidade Inicial para todas as redes de ensino do país e recursos adicionais, na perspectiva afirmativa, para as escolas localizadas em territórios marcados por mais desigualdades, em especial aqueles com predomínio de pessoas negras e indígenas, as mais pobres”, explica Denise.
Educação para a diversidade
Falar que a pandemia aprofundou as desigualdades vividas diariamente no Brasil não é o suficiente para descrever o cenário da crise econômica e social instaurada no país. Atualmente, são cerca de 13,5 milhões de brasileiros desempregados – segundo dados da Pnad Contínua -, mais de 116,8 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil e 19,1 milhões passando fome, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
O racismo, característica marcante da sociedade brasileira, faz com que sejam maioria pessoas negras em situação de alta vulnerabilidade social, com condições precárias de moradia, com acesso inadequado a sistemas e tratamentos de saúde e em situação de fome, conjunto de fatores que contribuiu para que pessoas negras fossem as maiores vítimas da Covid-19.
Nesse sentido, Denise reforça a importância de a escola abordar temas como equidade, racismo e a história dos povos africanos e brasileiros. “É necessário implementar a LDB [Lei de Diretrizes e Bases], alterada pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabeleceram a obrigatoriedade do ensino da história e das culturas africana, afro-brasileira e indígena, além do artigo 8º da Lei Maria da Penha (11.340/2006), que determina que todas as escolas devem abordar as questões de gênero e raça como forma de prevenir a violência doméstica e intrafamiliar.”
A educadora complementa ao pontuar que a escola deve ser um lugar que acolha e proteja crianças, adolescentes e jovens em uma perspectiva de direitos, o que inclui considerar as diversas realidades, experiências e culturas. “O direito à aprendizagem deve considerar esse contexto e os saberes, inquietações, experiências e conhecimentos que os estudantes trazem e que estão nas famílias e nos territórios. Isso tudo é currículo.”
Motivação e engajamento dos estudantes
Muito tem se discutido a necessidade de pensar em novos modelos e propostas educacionais com o objetivo de motivar os estudantes, engajá-los e mantê-los envolvidos com a escola e sua educação. Sonia Dias, coordenadora de implementação municipal do Itaú Social, defende que essa já era uma preocupação antes da pandemia, mas, com muitas crianças e jovens afastados, em muitos casos em situações de vulnerabilidade e precisando trabalhar para complementar a renda familiar, será necessário rever alguns elementos da educação.
O primeiro deles é o próprio ambiente escolar. “A escola precisa ser um lugar em que a criança, o adolescente e o jovem gostem de ficar, se sintam bem, acolhidos, seguros. Além disso, deve ser um bom ambiente também para os professores porque, com gestores e educadores bem, há a promoção de aprendizado.”
A coordenadora também fala sobre a importância da reflexão de maneiras de apresentar os conteúdos de forma mais interessante, o que, por sua vez, pode incorporar soluções adotadas durante as aulas remotas, em vez de descartar tudo o que foi feito a partir do retorno às aulas presenciais.
A realização de um processo diagnóstico consciente e intencional de forma a compreender como está o aprendizado das crianças também será importante para avaliar as melhores estratégias para apoiar seu desenvolvimento a partir do ponto em que estão em termos de conhecimento.
Formação docente
O apoio e acompanhamento dos profissionais de educação é outra agenda que estará em alta em 2022. Muitos profissionais de educação precisaram usar equipamentos próprios e não contaram com apoio de suas escolas, redes e/ou secretarias de ensino para fazer a migração do presencial para o online, o que acarretou jornadas de trabalho excessivas e quadros de estresse e ansiedade.
Diante dessas vivências, Sonia pontua que a maioria das redes de ensino precisará rever e incluir em seu planejamento questões relacionadas a infraestrutura e apoio aos professores e estudantes com equipamentos e pacotes de dados para acessar a internet. “O fato é que nem todas as redes conseguem dar o apoio necessário. Por isso, são necessárias ações maiores, com envolvimento não só dos municípios, mas também do MEC [Ministério da Educação] e do governo federal no sentido de pensar uma política que apoie a formação docente.”
Para a coordenadora, as reflexões sobre formação docente precisam ir além de apoio para equipamentos e conectividade e envolver também qual plataforma será usada, se os educadores sabem utilizá-la adequadamente, de que suporte essa tecnologia precisa e quem fornecerá esse suporte, entre outros pontos. “É um movimento de pensar a formação docente voltada para a educação híbrida e uso de recursos educacionais digitais em todos os campos. E as formações iniciais também podem e precisam incorporar esses componentes da formação híbrida do ensino online”, ressalta.
Oportunidades de atuação para o ISP
Historicamente, educação é a área que mais recebe recursos e atenção do investimento social privado. Entretanto, diante da pandemia, os focos de atuação de institutos, fundações e empresas se multiplicaram. O Censo GIFE 2020 mostra que há uma tendência de queda da parcela de respondentes com atuação na área: 84% em 2016, 80% em 2018 e 76% em 2020.
Mesmo assim, trata-se de um recorte expressivo de investidores que atuam na agenda. Denise afirma a importância do trabalho que vem sendo realizado por institutos e fundações empresariais de apoio a programas de educação antirracista promovidos por organizações do movimento negro da sociedade civil.
A especialista destaca ainda a importância de retomar a construção e implementação de políticas de Estado, com planejamento de médio e longo prazo, com financiamento adequado e controle social. Nesse âmbito, uma agenda que a educadora encara como fundamental no escopo da revisão da Lei de Cotas é a defesa pública de ações afirmativas com critérios racial e social em universidades públicas.
“São políticas que têm mudado a cara da universidade brasileira, que tem sua origem profundamente marcada por um projeto branco e elitista. Não podemos retroceder. O investimento social privado deve se posicionar publicamente contra a manutenção de uma política econômica que vem destruindo a capacidade do Estado de garantir políticas educacionais e de outras políticas sociais e ambientais e de enfrentar as nossas imensas e cada vez mais profundas desigualdades.”
Sonia, por sua vez, cita o estudo Perdas de Aprendizagem na Pandemia, realizado pelo Insper em parceria com o Instituto Unibanco, que estima uma perda de aprendizagem de 10 pontos de aprendizado na escala Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2020 para cada jovem no Ensino Médio.
Considerando todo esse contexto, a coordenadora aponta que o investimento social privado pode apoiar as políticas públicas em prol da educação em algumas frentes. Uma delas é a promoção do acesso e retorno seguro das crianças e jovens à escola, observando não só as condições da escola, mas também a situação familiar de cada estudante. O segundo aspecto compreende um aprendizado com apoio e boa orientação, o que remete à recomposição das aprendizagens.
“Institutos e fundações podem, a partir de ações inspiradoras e importantes, promover ações e realizar parcerias que promovem determinada rede e que gerem experiências inspiradoras para outras redes também.”
Por: Gife
Fonte: gife.org.br