Sim. Ela existe de verdade. Está ‘cientificamente’ comprovada e já tem suas características mapeadas. Sei que para as organizações sociais que captam recursos, e têm visto o caixa diminuir ano a ano, pode parecer uma insensatez, mas chegou o momento de olhar para a Cultura de Doação que temos, porque conhecendo-a melhor, podemos trabalhar juntos para fazê-la crescer em quantidade e qualidade.
A primeira pesquisa abrangente a investigar o perfil do doador brasileiro, a Pesquisa Doação Brasil, trouxe dados de 2015. Depois disso, outras vieram, com metodologias e recortes diferentes. Mas todas confirmaram aquele retrato inicial no qual se podem ver claramente alguns traços determinantes* da nossa Cultura de Doação.
- Aproximadamente metade da população brasileira doa, pelo menos uma vez por ano, para uma organização social.
- Crianças, Saúde e Combate à Pobreza são as causas mais citadas.
- O valor médio de doação anual era de R$ 250 e vem caindo, sendo que a última pesquisa apontou R$ 200.
- A forma preferida de doação dos brasileiros é em dinheiro vivo.
- Os brasileiros doariam mais se soubessem o que é feito com o dinheiro doado.
Não é preciso refletir muito sobre essas informações para concluir que um país no qual metade da população doa para organizações sociais tem uma Cultura de Doação. Mas quem sente na pele as dificuldades de obter essas doações pode, e deve, questionar a qualidade dessa Cultura.
Analisando os dados quantitativos e qualitativos das pesquisas, concluímos que a Cultura de Doação, no Brasil, é movida pelo coração. Somos um povo solidário, nos sensibilizamos ao ver o sofrimento das pessoas e queremos ajudar a aliviar a situação. Exposto assim, parece que está tudo bem, mas essa postura está longe de ser a ideal.Primeiramente, não forma um doador constante, pois ele só doa quando enxerga a dor do outro. Por isso há tantos pedidos de doação com fotos de crianças ou idosos em sofrimento. É o caminho mais curto para conseguir a doação e o mais rápido para perder o doador, porque não estabelece vínculo. Provoca uma doação imediatista e por impulso. A pessoa vê o sofrimento alheio, doa, atenua seu sentimento de solidariedade ou de culpa em relação ao semelhante e… acabou o ciclo. Muitas vezes, não sabe sequer para o quê, exatamente, está doando. Portanto, não surpreende que também não saiba como é usado o dinheiro.
É claro que quem está trabalhando no campo, resolvendo problemas urgentes, precisa do recurso com urgência e não vai questionar se a doação veio por impulso ou por decisão racional, mas as organizações mais estruturadas, ou mesmo as estruturantes, devem começar a educar e informar o doador para que ele contribua de forma consciente e consistente com uma causa de uma ou várias entidades.
Por falar em causa, este é um outro ponto interessante. De um modo geral, nós, brasileiros, não ligamos causa com doação. Como citei acima, as pessoas mencionam crianças, saúde e combate à pobreza como suas causas preferidas, mas as respostas refletem mais os problemas com os quais convivem do que uma noção de causa propriamente dita.
A presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), Paula Fabiani, costuma contar uma história interessante para mostrar a dificuldade que temos de conectar causa com doação. Quando está fazendo palestras sobre o tema, ela pergunta à plateia quem considera que a corrupção é um dos grandes problemas do Brasil. A maioria do público levanta a mão. Então pergunta quem doa para uma organização de combate à corrupção. Quando muito, duas ou três pessoas levantam a mão.
Esse episódio exemplifica bem como, mesmo pessoas instruídas, têm dificuldade de unir causa e doação. Porque essa é a nossa cultura, continuamos a achar que doação é algo para o sofrimento visível… mas doação é para o sofrimento da sociedade na qual nos encontramos.
Foi a partir dessa constatação que o IDIS criou uma Campanha por uma Cultura de Doação baseada em um teste para que a pessoa descubra qual é a sua causa (www.descubrasuacausa.net.br). Em vez de falar de doação, preferimos levar a pessoa a se questionar sobre qual seria sua causa. É um convite para um passo adiante no caminho da doação. Mas ainda temos outras barreiras a superar.
A segunda é a desconfiança que permeia as relações entre doadores e organizações beneficiadas. Não é agradável falar sobre o tema, mas ele existe e precisa ser olhado de frente.
A primeira coisa a ser aceita é que a desconfiança é compreensível. Vivemos um tempo em que os escândalos de desvio de recursos não param de surgir, sendo inevitável que o nível geral de desconfiança cresça.
A pesquisa Trust Barometer (Barômetro da Confiança) mostra que, dia após dia, a confiança nas instituições cai no mundo todo. E no Brasil não seria diferente. Porém, o que nos distingue – lamentavelmente – dos demais países, é que, na maioria deles, as ONGs são consideradas as instituições mais confiáveis, ganhando da mídia, das empresas e do governo. Aqui, entretanto, nós, as ONGs, estamos em segundo lugar, porque a população confia mais nas empresas. Nosso desafio é conquistar o primeiro posto. E para isso, precisamos contar melhor o que fazemos com os recursos que recebemos, e os resultados do nosso trabalho.
E temos que fazê-lo de forma atraente e convincente, porque na era digital ninguém está disposto a ler páginas e páginas de um Relatório Anual para entender o trabalho de uma organização social. É melhor um vídeo, infográfico, post ou seja lá o que for, mas a realidade é que existe uma guerra pela atenção do leitor/internauta e precisamos aprender a lutar. Caso contrário, continuaremos a ver as empresas, que investem muito dinheiro em comunicação e marketing, como as campeãs de confiança dos brasileiros.
E em terceiro lugar, vem, talvez, o desafio mais complicado: fazer com que os brasileiros falem sobre doação. Já reparou que ninguém fala sobre esse assunto? Você já imaginou alguém puxando uma conversa em uma mesa de bar comentando que encontrou uma organização social fantástica e que decidiu doar para ela? Não dá nem para imaginar… Simplesmente porque algo dentro de nós estabeleceu que não se fala sobre doação. É como se fosse um ato íntimo, que deve ser feito silenciosamente, sem mostrar para ninguém.
E esse comportamento parece ser provocado pelas melhores intenções. As pessoas não querem se gabar dizendo que doam e ajudam os demais. Mas o resultado dessa postura é que não influenciamos ninguém. Não fazemos com que as pessoas pensem em doação, ou fiquem curiosas para saber mais. Até mesmo empresas, muitas vezes, não mencionam que fazem doações ou serviços pro bono, para não parecer autopromoção. Quando vejo isso, sempre peço para que façam o contrário, que contem por aí, porque desse modo, quem sabe, podem influenciar seus concorrentes a fazer o mesmo.
Sei que acabei falando de muitos problemas e desafios que temos pela frente, mas é porque acredito que cabe a nós, organizações da sociedade civil, criar todas as condições necessárias para que essa recém-descoberta Cultura de Doação brasileira cresça, se desenvolva e garanta a sustentabilidade das organizações sociais. Porque seremos cada vez mais fortes se contarmos com os recursos e a confiança dos brasileiros. E poderemos devolver essa generosa doação com nosso trabalho, transformando nosso país em um lugar mais justo e acolhedor para todos.
Por: Andréa Wolffenbüttel
Fonte: filantropia.ong