Regular a constituição de fundos patrimoniais – também conhecidos como fundos filantrópicos ou endowments – para arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público é o objetivo da Lei 13.800/2019 que, em janeiro, completou um ano.
Originada da medida provisória (MP) nº 851, de 2018, a determinação versa sobre a destinação de rendimentos dos fundos – formados por um montante inicial proveniente de uma doação de recursos ou bens – para organizações que atuam nas áreas de educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social, desporto, segurança pública, direitos humanos e demais finalidades de interesse público.
Avanços
Segundo o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), desde que a lei foi promulgada em janeiro de 2019, duas organizações gestoras foram criadas de acordo com as regras determinadas: a Gestora de Fundo Patrimonial Rogerio Jonas Zylbersztajn e a da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que lançou o primeiro endowment de uma universidade brasileira.
Paula Fabiani, diretora-presidente do IDIS, comenta sobre processos de articulação já em curso para criação de outras seis instituições. Segundo ela, a expectativa é que o segundo ano da lei em vigor consiga esclarecer algumas das incertezas que marcaram os primeiros doze meses. Além do lançamento de outras organizações gestoras, o envolvimento de diferentes atores também é um ponto positivo esperado para 2020.
Entidade gestora: mais segurança aos investidores
Um dos principais mecanismos determinados pela nova lei é a necessidade de criação de uma organização gestora dos fundos. Isso significa que uma organização independente será responsável por, a cada projeto, atividade ou programa apoiado, firmar Instrumentos de Parceria e Termos de Execução de Programas e Projetos com as organizações apoiadas.
A medida garante que estejam em contrato as atividades a serem financiadas e o cronograma de transferência de recurso por parte do endowment, assim como o modelo de prestação de contas do projeto e seus critérios de avaliação. O grande objetivo é conferir mais segurança jurídica aos doadores, que terão garantido que os rendimentos dos recursos aplicados não serão utilizados para arcar com outros fins da instituição apoiada que não os projetos. Além de garantir que pessoas que já realizaram doações continuem a fazê-lo, a medida pode, ao mesmo tempo, atrair novas contribuições para os fundos.
Para Augusto Hirata, advogado e pesquisador da Fundação Getulio Vargas, a criação de uma organização independente também contribui com mais transparência na gestão dos recursos do fundo, uma vez que separa o patrimônio e contribui para identificação dos custos da estrutura de gestão. “Em uma pessoa jurídica com essa finalidade exclusiva – a organização gestora – toda a movimentação de recursos refere-se ao fundo patrimonial. Ademais, a governança da entidade refere-se exclusivamente à gestão do fundo patrimonial. Assim, fica mais simples para o investidor identificar as regras que asseguram a estabilidade de propósito do fundo”, afirma.
Vale ressaltar, entretanto, que a lei é inespecífica em determinados pontos, como os custos de gestão dessa nova entidade gestora. Como se trata de uma organização totalmente independente, teoricamente ela não contaria com isenções fiscais. Entretanto, ainda não há certeza como funcionará seu tratamento tributário. Augusto afirma que é esperado que não seja considerada entidade imune em razão da definição objetiva com relação à imunidade. “Sempre que a organização gestora beneficiar entidade imune é esperado, portanto, uma ineficiência tributária em relação à gestão do fundo pela própria beneficiária.”
Isso significa que custos decorrentes da entidade gestora serão abraçados pelo próprio fundo patrimonial. Para o pesquisador, é importante colocar na balança se o ganho de segurança compensa os custos adicionais. “Para fundos maiores, o custo adicional será menos relevante. Para fundos menores, talvez torne o fundo patrimonial economicamente inviável: rendimentos serão inferiores ao custo de gestão.” “Esse é um ponto de advocacy da Coalizão pelos Fundos Patrimoniais Filantrópicos junto à Receita Federal para garantir que a organização gestora tenha as mesmas isenções fiscais da beneficiária”, afirma Paula Fabiani.
Lançada em junho de 2018, durante o II Fórum Internacional de Endowments para Legados Culturais em Brasília, a Coalizão, grupo formado por organizações e pessoas interessadas na criação de Fundos Patrimoniais Filantrópicos no Brasil, é coordenada pelo IDIS com apoio institucional do GIFE e conta, atualmente, com mais de 70 participantes.
Por que a lei é importante
Segundo especialistas ouvidos no sexto episódio da websérie Sustenta OSC, veiculada em 2018 no âmbito do projeto Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, o que garante a sustentabilidade e independência financeira de uma organização é contar com um fluxo permanente de receitas que não dependam de financiamentos mais pontuais, focados em projetos.
O fundo patrimonial apresenta-se como uma das opções para atingir a sustentabilidade, ao permitir que seus rendimentos sejam aplicados em organizações de interesse público. Esse fluxo constante permite que as instituições possam olhar para melhorias de longo prazo, como investimentos em infraestrutura. De acordo com a publicação Fundos Patrimoniais e Organizações da Sociedade Civil, correalizada por GIFE e FGV Direito SP, “nenhum projeto de longo prazo, como os das organizações da sociedade civil (OSC), pode ser adequadamente desenvolvido com financiamento intermitente”.
A pesquisa, que integra a coleção Sustentabilidade Econômica das Organizações da Sociedade Civil, reforça que a experiência brasileira com fundos patrimoniais é bastante limitada se comparada à realidade e histórico de outros países como Estados Unidos, que conta com fundos consolidados e expressivos. Um fato que dificulta o estudo do tema no ecossistema brasileiro é a falta de dados públicos e acesso a dados de entidades privadas.
O documento apresenta os resultados de análises de 22 entidades, com menção a diferentes aspectos relacionados ao tema, como política de resgate, política de investimento, identificação da finalidade e outros.
No universo de 22 entidades – selecionadas por serem frequentemente mencionadas em estudos sobre fundos patrimoniais -, 16 mantêm fundos. Dessas, 13 citam a existência do fundo em seus estatutos, sendo que dez delas mencionam a necessidade de autorização especial ou existência de um regulamento especial para gestão do fundo patrimonial.
É nesse recorte que o documento conclui que “apenas dez das 16 entidades não dedicadas exclusivamente à gestão do patrimônio mantêm de fato um fundo patrimonial – no sentido de patrimônio de uso restrito”. Quando o assunto é política de resgate, apenas dez das 22 organizações mencionam a existência dessas regras nos documentos pesquisados.
A realidade brasileira traduz porque alguns especialistas entendem que a lei é tão importante, não só como forma de oficializar e parametrizar o funcionamento de fundos patrimoniais, mas também para incentivar a divulgação do mecanismo como uma das formas de OSCs buscarem sua sustentabilidade financeira e atuação em longo prazo. Para Paula, a lei aumentou consideravelmente o interesse no assunto, visível pela quantidade de buscas pelo tema no site do IDIS e de palestras envolvendo atores que vão além da própria Coalizão, como advogados, gestores de recursos, representantes de bancos e outros.
Além disso, a diretora aponta também a possibilidade de a lei incentivar o desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro, com destaque para o capital paciente. “Esse tipo de capital, paciente e perene, quase não existe no Brasil porque sempre vivemos em um ambiente com taxas de juros muito elevadas, em alguns momentos as mais elevadas do mundo. Ter essa possibilidade de um capital que pode esperar dez anos para retornar é muito positivo para o desenvolvimento do mercado de capitais mais sadio e capaz de financiar infraestrutura e saneamento, por exemplo, setores em que é necessário esse tipo de recurso e investidores que não têm pressa para receber o retorno do seu investimento”, diz.
Desafios
Após mais de um ano da promulgação da lei, algumas questões permanecem à mesa. Uma delas refere-se a necessidade de esclarecimento sobre como funcionará o tratamento tributário das organizações gestoras de fundos. Para Paula, é importante que essas instituições tenham as mesmas isenções fiscais das organizações beneficiárias. Ainda segundo a diretora, a lei abre a possibilidade de pensar em outras formas para que os recursos públicos cheguem aos fundos, como por exemplo, o excedente do captado via Lei Rouanet.
Augusto, por sua vez, argumenta que a lei poderia aprimorar a regra de resgate. Segundo o pesquisador, apesar de as exigências sobre estrutura governamental terem sido flexibilizadas desde o processo de tramitação da MP 851, o mesmo não aconteceu quando o assunto é resgatar recursos do fundo: apenas os rendimentos podem ser resgatados periodicamente. “A regra é ineficiente se comparada à possibilidade de resgatar um percentual do patrimônio: além de dificultar a preservação do patrimônio, provavelmente implicará resgates heterogêneos.”
Outro desafio prático decorrente da nova lei é, de fato, medir seus resultados. Augusto explica que não existem bancos de dados ou fontes seguras para consultar quantos eram os fundos patrimoniais antes da criação da lei. De qualquer forma, o advogado pontua que o aumento de debates sobre o tema cumpre o papel de incentivar o surgimento de novos fundos, seja seguindo o modelo previsto por lei ou não.
O pesquisador afirma, ainda, que o texto poderia apontar de maneira mais clara que a lei disciplina apenas um modelo, entre vários existentes, de fundo patrimonial, ressaltando a possibilidade de outras formas de organização.
Outro ponto que merece destaque é o próprio texto do dispositivo, mais especificamente no Art. 1º: “Esta Lei dispõe sobre a constituição de fundos patrimoniais com o objetivo de arrecadar, gerir e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para programas, projetos e demais finalidades de interesse público.” Isso significa que, nos termos da lei, é inviável a criação de um fundo patrimonial a partir de recursos públicos. “A lei foi criada para servir como alternativa de captação de recursos privados para entidades públicas. Nesse sentido, é razoável dizer que o legislador não pensava exatamente na captação de recursos públicos para manutenção dos fundos”, argumenta Augusto.
Por: Gife
Fonte: gife.org.br