O ensino superior no Brasil vivenciou uma significativa expansão nas últimas décadas, contrastando com o cenário de mais de 100 anos atrás, quando foi criada a primeira universidade no país. Esse crescimento trouxe novos desafios, como a garantia da permanência estudantil e a inclusão de grupos historicamente marginalizados. No especial de outubro, a redeGIFE reuniu especialistas para analisar esse contexto e refletir sobre como o Investimento Social Privado (ISP) pode contribuir para consolidar uma educação superior mais inclusiva e fortalecida.
A primeira universidade do Brasil foi fundada em 1920, a Universidade do Rio de Janeiro. Antes disso, existiam faculdades isoladas, como a Faculdade de Direito de Olinda (1827) e a Faculdade de Medicina da Bahia (1808), mas não havia uma estrutura universitária completa. A criação da UFRJ marcou o início do sistema universitário brasileiro, consolidando cursos e áreas de pesquisa em um único lugar, algo que outros países já possuíam há séculos.
Se naquele período o espaço era reservado para os filhos da elite brasileira, em 2023, mais de 4,9 milhões de pessoas iniciaram um curso de graduação. Esse número havia sido de 4,7 milhões em 2022 e 3,9 milhões em 2021, como aponta o Censo da Educação Superior 2023, publicado pelo Ministério da Educação (MEC) em outubro deste ano.
“Não existe país sem universidade”, afirma Jorge Sales, professor do Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele aponta que o ensino superior tem um papel fundamental para o desenvolvimento socioeconômico de uma nação.
“Um país que pretende e precisa se desenvolver, como o Brasil, é importante ter um ensino superior forte, bem articulado e bem conduzido”
JORGE SALES, professor da UFBA
O país viveu uma expansão e interiorização das universidades públicas entre 2003 e 2012, em decorrência da instituição do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), porém outros desafios se apresentaram.
“Apesar da ampliação do número de vagas e da democratização do acesso pelo Enem, além de programas inclusivos, persiste nos cursos de graduação um desequilíbrio entre a quantidade de alunos de renda baixa e os de renda maior”, afirmam Keila Pinezi, professora associada da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, e Eliana Ganam, assistente social judiciária do Tribunal de Justiça de São Paulo. As duas dividem a autoria do artigo “Desafios da permanência estudantil universitária: um estudo sobre a trajetória de estudantes atendidos por programas de assistência estudantil”.
Elas explicam que o acesso e permanência ainda constituem entraves para que os jovens de baixa renda se matriculem e permaneçam no curso, engrossando os números de evasão.
“Jovens de camadas populares trabalham a maior parte do dia. Por essa razão, horários flexíveis, com aulas noturnas e aos sábados, bolsas de pesquisa e extensão e aumento de verbas para a assistência estudantil são alguns dos instrumentos que a universidade deve ampliar para mitigar a exclusão de estudantes advinda das desigualdades sociais”, ponderam.
Mudanças
De acordo com o Censo da Educação Superior 2023, dos alunos que ingressaram em 2023, 88,6% estão na rede privada e 11,4% na rede pública. Estudantes da modalidade EaD representam 66,4% dos matriculados, e em cursos presenciais são 33,6%.Rede PrivadaRede PúblicaRede Privada: 88.6EaDPresencialPresencial: 33.6
“O crescimento do EaD é uma tendência, mas sua expansão para áreas em que a atividade prática é importante – como diversas engenharias e ciências da saúde – é algo desafiador, já que há mais processos e critérios envolvidos”, comenta Luiz Vicente Rizzo, conselheiro consultivo da Fundação Maria Emília (FME).
Para ele é preciso verificar a evolução nos próximos anos para chegar em conclusões mais definitivas a respeito dessas estatísticas. Mas, 100 anos depois da criação da primeira instituição de ensino superior no país, as influências econômicas seguem fundamentais.
“Já há um impacto claro das apostas on-line no ambiente de educação superior”, comenta Luiz Vicente. Uma pesquisa realizada pela Educa Insights, por exemplo, revelou que 35% dos brasileiros que planejavam dar início à graduação em 2024 adiaram essa decisão por estarem comprometendo sua renda com apostas on-line.
Permanência estudantil
O ano de 2023 também marcou a constatação de outro dado importante sobre o atual cenário da educação superior no Brasil. É a primeira vez, desde 2016, que que a proporção de universitários negros no Brasil sofreu uma queda significativa.
A proporção de estudantes negros matriculados em universidades brasileiras diminuiu de 50,3% em 2022 para 47,8% em 2023 – aponta a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Educação analisados pelo Globo.202250.3%202347.8%
A queda evidencia um retrocesso em relação ao crescimento contínuo que vinha sendo observado por parte do maior grupo populacional do país nesse espaço nos últimos anos, especialmente desde a implementação da Lei de Cotas.
David Levy atua na coordenação do Cursinho Popular Milton Santos, organizado pela Juventude Fogo no Pavio Bahia e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), lembra que a Lei de Cotas, além de levar mais a “cara do povo” para as universidades, influenciou o “fazer ciência”, contribuindo com novas epistemologias e metodologias científicas. “É importantíssimo que a Lei de Cotas seja defendida e ampliada”, afirma.
Para Cláudia Romano, presidente do Instituto Yduqs e do grupo educacional Yduqs, os programas de ação afirmativa têm resultados evidentes.
“Quando uma pessoa não branca, de baixa renda, da periferia ou de uma comunidade tradicional se forma, ela não apenas muda a sua própria vida, mas transforma o imaginário das pessoas ao seu redor. Família, amigos e vizinhos passam a acreditar que a universidade é, sim, um espaço que podem ocupar.”
No Cursinho Milton Santos, Davi Levy observa que as juventudes das classes populares têm grandes expectativas em relação ao ensino superior, mas enfrentam os desafios da permanência antes mesmo de iniciarem a vida acadêmica universitária. “O processo de acesso dessas pessoas à universidade já é tortuoso. Por vezes precisam conciliar a escola com trabalho, ou se deparam com uma realidade em que, devido à criminalidade, precisam lidar com toques de recolher em seus bairros e faltar às aulas.”
Outra questão ao se pensar ensino superior é a precariedade das políticas de assistência estudantil. “Esse é um problema gravíssimo no país. Ainda carregamos todas as implicações e os efeitos nocivos de uma sociedade escravagista”, reflete o professor Jorge Sales.
Keila Pinezi e Eliana Ganam chamam atenção ainda para o desafio de superar o estereótipo de estudante de escola pública e do cotista, de que não domina inteiramente conhecimentos básicos, e que deve “se desdobrar” para superar as fragilidades e lacunas existentes em sua formação escolar. “O estigma é um elemento no rol dos obstáculos a serem enfrentados pelos estudantes na busca por legitimidade diante dos demais atores da comunidade acadêmica.”
ISP pela educação
Nesse sentido, o investimento social privado (ISP) possui papel importante na promoção da permanência de estudantes no ensino superior.
“Em um cenário onde o acesso a oportunidades educacionais ainda esbarra nos entraves das grandes desigualdades sociais, o ISP se torna crucial. Especialmente sob a ótica da expansão de oportunidades, garantia da permanência, e conclusão do ensino superior para a população com menor renda”, frisa Cláudia Romano.
De acordo com dados de 2021 do relatório “A contrapartida do setor filantrópico no Brasil”, realizado pelo Fórum Nacional das Entidades Filantrópicas, o país, à época, possuía 286 instituições filantrópicas na educação superior. Em 2019, informa a pesquisa, essas instituições tinham mais de 423 mil alunos matriculados em modalidades de financiamento estudantil elegíveis para a certificação da filantropia, como bolsas de estudo oferecidas pela própria instituição de ensino e através do Programa Universidade para Todos (PROUNI).
Cláudia Romano reforça que a garantia do desenvolvimento do ensino superior se dá não só no momento em que o aluno entra em sala de aula, mas é essencial pensar em todo o ecossistema de suporte social necessário na caminhada até o diploma.
Algumas das abordagens que podem ser adotadas por institutos, fundações e empresas, afirma, é apoiar iniciativas voltadas à formação continuada de professores e à infraestrutura educacional, além de investir em tecnologias que facilitem o ensino híbrido e remoto.
Algumas das abordagens que podem ser adotadas por institutos, fundações e empresas, afirma, é apoiar iniciativas voltadas à formação continuada de professores e à infraestrutura educacional, além de investir em tecnologias que facilitem o ensino híbrido e remoto.
No Instituto Yduqs, uma das principais iniciativas é um programa de bolsas de graduação em duas modalidades: esportes, para atletas e paratletas; e cidadania, através de parcerias com outras instituições do terceiro setor. Já para garantir a conclusão dos estudos, foi criado o Programa Rede de Valor, que oferece bolsa auxílio para estudantes de medicina oriundos do PROUNI.
“O fortalecimento da educação superior deve ser uma responsabilidade compartilhada, onde cada ator social contribui para construir um sistema mais justo e inclusivo”, finaliza Cláudia Romano.
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