Para serem agentes de impacto social, os conselhos diretores das ONGs devem focar no propósito

Enquanto cresce a percepção sobre a importância do Terceiro Setor para superar desigualdades e injustiças sociais estruturais, a atenção se volta sobre a própria estrutura das organizações sociais, como a composição e forma de atuação dos conselhos diretores. Li um artigo com novas perspectivas sobre esse tema, achei interessante e trago os principais pontos comentados.

Nos últimos anos, tem crescido a conscientização sobre a profundidade e caráter sistêmico das desigualdades e injustiças sociais, desencadeando debates e discussões necessárias sobre como as instituições precisam se transformar para melhorar a sociedade como um todo. A pandemia da COVID-19 explicitou ainda mais essa necessidade, e a importância do Terceiro Setor para gerar impacto social e ser um motor dessas transformações que todos queremos.

Nos Estados Unidos, onde este debate é mais avançado, o setor social está repensando sua estrutura para de fato serem agentes de mudanças estruturais. Um artigo na Stanford Social Innovation Review com um novo olhar traz um exemplo de discussão que rende no mundo da filantropia nos EUA: como os boards of directors (em português, conselhos diretores ou conselhos de administração) de fundações e ONGs precisam se transformar para serem um agente positivo de impacto social?

O artigo é assinado por Anne Wallestad, CEO da BoardSource, ONG especializada em fortalecer a liderança de alto nível das organizações sociais. Ela começa reconhecendo que os conselhos são, muitas vezes, obstáculos para que as organizações tenham impacto efetivo. Mas afirma acreditar que isso pode mudar, e mostra como. Anne explica que, atualmente, os conselhos são órgãos “curiosos”: possuem um poder significativo, mas apenas coletivamente, afinal nenhum membro pode agir sozinho e as decisões são sempre por consenso ou votação. Eles estão ao mesmo tempo “acima e fora” da estrutura da Organização, e prestam contas “para dentro e para fora” delas. Eles têm toda a autonomia para mudarem sua Organização e, por tudo isso, a composição dos boards é crucial para que as ONGs sejam bem-sucedidas ou falhem.

Por exemplo, alguns boards são mais focados no fundraising e consequentemente buscam acessar potenciais doadores com grande capacidade financeira. Neste cenário, se tal Board precisar analisar questões estratégicas que exijam conhecimentos profundos do trabalho que a ONG faz e da comunidade a qual serve, qual a solução? E se um Board – que considera ser principalmente um órgão de supervisão financeira ou jurídica – precisar lidar com desafios referentes aos programas (que requer conhecimentos técnicos) da Organização, o que podemos fazer?

Quando a ONG possui tais conselhos cujos membros são mais especializados em uma certa área em detrimento de outra, as Organizações deixam os Boards de lado de todas as decisões estratégicas, o que as tornam muito dependentes do CEO (ou diretor executivo), ou deixam um conselho mal-informado tomar as decisões, com consequências previsíveis, isto é, danosas para a ONG. A pesquisa da BoardSource que baseou o artigo mostra que, de acordo com os 800 CEOs e presidentes de conselho entrevistados, os Boards atualmente estão:

  • Preocupados acima de tudo com o fundraising;
  • Desconectados do público ou comunidade que pretendem atender;
  • Mal-informados sobre os ecossistemas em que as Organizações operam;
  • Compostos por pouca diversidade étnico-racial.

Hora da mudança

Para a BoardSource, a solução para esse dilema é criar Boards que sejam baseados em Purpose-Driven Leadership, ou “Liderança Guiada por Propósito”. Em resumo, um mindset caracterizado por quatro princípios interdependentes:

  • Priorizar o Propósito à própria Organização;
  • Respeitar o Ecossistema onde a ONG opera;
  • Comprometer-se com a equidade;
  • Considerar que o poder e voz da ONG sejam “reconhecidos” pelas pessoas e comunidades assistidas pela Organização.

Tradicionalmente, os conselhos das ONGs são “mission driven” (guiados pela missão), o que significa que o board é responsável por garantir que a Organização faça um bom trabalho e avance sua causa. A autora acredita que isso centra muito na Organização, e é preciso mudar o foco para a razão fundamental da existência da ONG: o propósito. Segundo ela, Missão (o que faço), Visão (onde quero chegar) e Valores (como farei) são elementos do Propósito.

Assim, o conselho Purpose-Driven é responsável primeiramente por direcionar as capacidades da Organização e maximizar seu impacto positivo para o propósito. Os boards, até legalmente, operam sob o princípio da lealdade, ou seja, para evitar conflitos de interesse. Mas, normalmente, essa lealdade é direcionada à própria Organização, enquanto deveria ser ao propósito.

A autora dá um exemplo: uma Organização trabalha em um projeto de saúde pública para educar sua comunidade sobre a importância da vacinação. Pesquisas com focus groups mostram que o nome ou logo da ONG confunde ou distrai o público sobre a mensagem principal da campanha. Mudar as peças geraria custos e removeria a percepção da marca da Organização.

Se a equipe executiva levar esse problema ao conselho, um board tradicional perguntaria: “o que é melhor para a organização?” Enquanto um board guiado por propósito perguntará: “o que é melhor para atingir o desejado impacto social que queremos?”, e não deixaria preocupação com o orçamento, por exemplo, atrapalhar a concretização desse impacto.

Sobre o ponto do orçamento, faço um comentário, pois este exemplo diferencia a administração de uma ONG de uma empresa privada. Em uma empresa, se o seu resultado financeiro está negativo, o seu gestor estará sob o risco de perder o emprego. Em uma ONG, se tal déficit é devido a consecução do seu propósito, tal gestor não necessariamente estará ameaçado a ficar desempregado. Ilustro: uma ONG (hospital beneficente que combate especificamente o câncer) comprou um aparelho de última geração que mitiga as mortes de pacientes com câncer e, como resultado, tem um déficit em suas finanças. O Board deste hospital vai ajudar a sanar este buraco financeiro sem considerar – pelo menos neste momento – terminar o contrato deste gestor.

Sobre “respeitar o ecossistema”, a autora adverte que escolher os membros do board apenas por sua expertise técnica é um erro, e o aspecto técnico deve ser balanceado com a proximidade e interesse dos membros com a comunidade ou público impactados, e com os outros players que atuam nesse ecossistema, como outras ONGs, associações comunitárias ou órgãos governamentais.

Assim, uma vez demandado:

-Board tradicional perguntaria o seguinte: como isto impactaria a nossa ONG?

-Purpose-Driven Board perguntará:como isto impactaria os players e suas dinâmicas dentro do nosso ecossistema? Isto nos ajudaria como um todo (ecossistema)? 

Sobre o comprometimento com a equidade, além da preocupação com a diversidade na composição do conselho (que é essencial), é preciso entender o contexto em que a ONG opera para priorizar a distribuição de recursos de acordo com uma consciência sobre as desigualdades estruturais que afetam o sistema ou a comunidade assistida. Assim, uma vez demandado:

-Board tradicional perguntaria o seguinte: como a estratégia avançará a nossa missão?

-Purpose-Driven Board perguntará: como esta estratégia ou decisão criará mais resultados justos em termos de equidade? Há indícios que nossas ações estão reforçando desigualdades sistêmicas? Se sim, o que faremos para evitar isso?

Por fim, quanto ao “reconhecimento” do público atendido, o Board deve buscar engajamento com o mesmo. Em outras palavras, Board tem a responsabilidade de engajar e de compartilhar o poder com aqueles impactados, pois isto demonstra que suas decisões estão dentro de um contexto de entendimento das necessidades, preferências e das aspirações de uma dada comunidade. Assim, uma vez demandado:

-Board tradicional perguntaria o seguinte: o que nós achamos que seja o melhor?

Purpose-Driven Board perguntará:a composição do Board assegura que o poder da Organização é reconhecido pela comunidade impactada pelo nosso trabalho? Estamos realmente escutando o que os stakeholders de nossos programas estão recomendando fazer?

Ela encerra afirmando que essa transformação não requer mudanças imediatas radicais na composição dos conselhos ou da liderança, mas os boards devem aproveitar a flexibilidade de suas estruturas para, aos poucos, moldá-la de acordo com o propósito da Organização.

Achei todos os insights muito valiosos e sintonizados com as melhores práticas relacionadas aos Boards do Terceiro Setor, seja no País, seja nos EUA. Claro, conforme a filosofia japonesa “kaizen” (melhoria contínua), a nossa responsabilidade como profissionais do Terceiro Setor é assegurar que estejamos sempre nos atualizando de tais práticas com o intuito de garantir que os impactos de nossas ações sejam os maiores possíveis em relação a comunidade (ou causa) que assistimos.

Sobre o autor: Edmond Sakai é diretor regional da Sede Mundial da ONG internacional médica Operation Smile. É advogado e professor universitário. É mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo e mestre em Administração de ONGs pela Washington University in St. Louis, EUA. Foi professor de Direito Internacional na UNESP, professor de Gestão do Terceiro Setor na FGV-SP e Representante da Junior Chamber International na ONU. Recebeu Voto de Júbilo da Câmara Municipal de São Paulo.

*A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião do Observatório do Terceiro Setor.

Por: Edmond Sakai

Fonte: observatorio3setor.org.br

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