Levar atendimento médico a regiões esquecidas do Brasil, contar histórias para crianças hospitalizadas e distribuir doações entre grupos vulneráveis são algumas das possibilidades de atuação para voluntários.
Até 2019, quase 7 milhões de brasileiros realizavam algum tipo de trabalho voluntário. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua), eles atuavam como voluntários, em média, por 6,6 horas a cada semana. De acordo com a mesma pesquisa, a adesão ao voluntariado estava em queda no país antes da pandemia.
Para Marina Frota, diretora do Atados, organização que busca conectar quem quer ser voluntário às Organizações da Sociedade Civil (OSCs), o voluntariado é uma forma de exercer a cidadania e precisa ser mais incentivado nos âmbitos da sociedade.
“É pensar em você como uma parte atuante na sociedade. Para ser voluntário, você não precisa ter uma renda muito alta, porque não é só dinheiro. Ser voluntário é querer colaborar da forma que puder. E existem muitos meios de fazer isso. As pessoas precisam ter em mente que o voluntariado é uma oportunidade de troca, em que organização e voluntário aprendem juntos”, pontua Marina.
Desde 2012, o Atados vem se dedicando ao fortalecimento dessa visão sobre o voluntariado, ao reforçar o papel fundamental do trabalho colaborativo. Hoje, a organização conecta pessoas de todo o país a mais de 3 mil OSCs que atuam em 25 causas diferentes.
Marina argumenta que o voluntariado oferece uma gama variada de vagas, de mobilizador de recursos a programador. Ela cita como exemplo dessa variedade um projeto desenvolvido pelo Atados durante a pandemia, o Cartas Solidárias.
No projeto, voluntários escrevem cartas endereçadas a pessoas que precisam de acolhimento, como os líderes comunitários que estão acolhendo todos e nem sempre são acolhidos. No total, foram disponibilizadas 6 vagas, que receberam mais de 2 mil inscrições.
“As pessoas querem ajudar. A gente observa isso quando há desastres ambientais, como ocorreu em Mariana (MG), em 2015, e agora com a pandemia. Neste momento, é fundamental trabalhar isso para ser algo contínuo e as vagas de voluntariado online são um bom caminho para que esse ‘math’ entre ONG e voluntário seja ainda melhor”, afirma.
A proporção de vagas online no Atados aumentou durante a pandemia junto à recepção das ONGs para esse tipo de colaboração. Marina ainda destaca outro fenômeno que vem observando pelo Atados: voluntários começam a criar seus próprios projetos para colaborar com as causas que os mobilizam. “O impacto que o voluntariado gera é maior do que muitos pensam”, reforça Marina.
Viajando para levar saúde
Em São José do Rio Preto, município do interior de São Paulo, o voluntariado vem transformado a vida da médica otorrinolaringologista Geila Moreira da Silva, de 51 anos, desde 2016. Foi quando ela conheceu o trabalho da organização Voluntários do Sertão a convite de um ex-colega de faculdade.
Há mais de duas décadas a Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) Voluntários do Sertão realiza mutirões de saúde em cidades vulneráveis da região Nordeste, principalmente no estado da Bahia.
Em sua primeira participação nos mutirões, Geila não sabia se estava conseguindo contribuir devido à falta de equipamentos específicos para os diagnósticos de otorrino. Após discutir o desafio com uma colega de profissão e com a ONG, a Voluntários do Sertão conseguiu uma cabine de audiometria emprestada e a doação de 20 aparelhos auditivos.
“Para mim, o principal era conseguir ir além do diagnóstico e oferecer um tratamento. Já tinha atuado como voluntária na minha cidade, mas não conseguir tratar o paciente era o que me afastava. E a Voluntários me deu isso, os recursos para o tratamento e o espaço para mobilizar”, conta.
O ambiente engajado e motivador que encontrou na ONG levou Geila para o seu segundo mutirão, com equipamentos e os aparelhos doados. Desta vez, as sensações foram diferentes.
“Não consigo nem descrever. Mas tem uma história que me marcou muito e mostra o impacto de estar ali. Tínhamos separado um aparelho auditivo para uma moça e ela não foi. Então, ligamos para um senhor de 90 anos que estava na fila. Ele teve que pegar três ônibus para chegar, mas veio. E foi lindo ver a alegria dele em poder falar com a gente sem ter que gritar”, lembra.
A experiência é compartilhada com colegas quando volta para São Paulo, e Geila destaca que já conseguiu levar alguns para os mutirões. Todos dividem com ela o impacto de trabalhar em regiões em que chegam a ser recebidos com fogos de artificio devido às dificuldades da população local para acessar os serviços de saúde.
“O voluntariado modifica a nossa vida. E não apenas pelo que fazemos, mas pelo impacto que as pessoas que atendemos causam em nós. Não sei se a gente consegue impactá-los tanto como eles nos impactam, mas é muito bom. A gente ganha mais do que recebe”, afirma Geila.
A cada mutirão, Geila volta com a mesma certeza: não tem como deixar de ir no próximo. Ela relembra o caso de uma moça de 24 anos que não estava escutando por causa da cera nos ouvidos. Quando conseguiu limpar um deles, a moça a abraçou pela cintura. Era a primeira vez que ela ouvia após três anos.
“Ela não escutava por um simples problema de cera, algo que em São Paulo as pessoas têm mais oportunidades de acesso para resolver. Um problema tão pequeno nos torna importantes na vida deles. É uma experiência que o dinheiro não compra. Você precisa ir lá e constatar que pessoas só por terem nascido em um determinado local geográfico não têm acesso a direitos básicos. É na semana desses mutirões que me sinto mais médica”, revela.
Contudo, Geila está há quase dois anos sem poder sentir todas essas emoções devido à pandemia da Covid-19. Agora, ela aguarda o cenário nacional melhorar para que possa levar saúde a quem precisa em 2022.
Kits para a autoestima
A produtora cultural Vera Campos, de 61 anos, tinha o hábito de andar com algumas peças de roupas na bolsa ou pagar algum lanche para quem está em situação de rua na cidade de São Paulo. Moradora do centro da cidade, ela foi observando o aumento de pessoas nesta condição ao longo dos anos, quadro que se agravou durante a pandemia.
No caminho até o trabalho, Vera começou a notar a maior presença de mulheres vivendo nas ruas, sozinhas ou com suas famílias. Ao conversar com algumas delas, ouviu a necessidade que tinham de itens básicos, como uma escova de cabelo, de dente, sabonete, absorvente e até álcool em gel.
“Comecei o Kit Com Elas no fim de 2020. Lembro de uma moça, ainda na primeira semana, que estava sentada em uma calçada e me pediu um absorvente porque não tinha como se levantar sem isso. A questão do absorvente, menstruar e não ter ou precisar colocar roupas velhas, meias e miolo de pão me impactou muito”, conta.
Aos poucos, amigos começaram a mandar os itens para compor os kits ou dinheiro para que Vera comprasse o necessário. Ela fazia os pedidos nas redes sociais para conseguir as doações, uma vez que a demanda é grande.
Com o apoio do empresário Tony Nogueira, de 71 anos, Vera consegue realizar uma ação maior a cada 15 dias. Ambos, junto a alguns voluntários, fazem as entregas dos kits em regiões do centro expandido da cidade com maior concentração de pessoas em situação de rua.
Hoje, além das mulheres, o projeto já entrega alguns kits para homens. “Um caso de um senhor motivou isso. Fomos entregar os kits e em 30 minutos todos acabaram. Esse senhor, quase chorando, questionou por que não tínhamos nada para os homens. ‘Eu também preciso escovar os dentes e barbear’. Resolvemos trazer esse olhar”, revela.
Além de itens básicos de higiene, o kit feminino inclui calcinhas – uma demanda das mulheres que Vera ouviu – e o masculino inclui o barbeador.
“A iniciativa de montar os kits veio com o objetivo de levantar a autoestima delas. O acesso a um desodorante, um pente de cabelo é escasso para a maioria das mulheres em situação de rua. Ainda não consigo colocar um batom ou esmalte, algo que elas falam que sentem falta. Sou voluntária de um projeto que atua para levantar a autoestima delas. É muito triste ver essas mulheres carregando diversos sacos com suas coisas e pertencentes. Várias ações pequenas como as minhas vão trazendo um pouco de alegria para elas”, conta.
Até o momento, o projeto Kit Com Elas conseguiu impactar ao menos 1 mil mulheres, mais de 150 por mês.
Contar histórias pode fazer a diferença
Antônio Alfredo Silva, mais conhecido por Tony Silva, de 55 anos, é analista de negócios em uma empresa de São Paulo. Tony é também contador de histórias na Associação Viva e Deixe Viver (Viva), organização constituída por voluntários que atuam com crianças e adolescentes em hospitais.
Mas a história de voluntariado de Tony tem alguns capítulos anteriores. Ainda em 1997, ele passou a atuar como voluntário em um abrigo para crianças e mães soropositivas (HIV+). Tony colaborava com as doações, organização de atividades e nas brincadeiras com as crianças abrigadas.
Em 2002, ele acompanhou uma das crianças durante uma internação no Hospital Emílio Ribas e foi lá que o primeiro contato com a Viva ocorreu. “Aquilo foi mágico, sabe? Como os contadores conseguiram mudar a realidade daquela menina, a alegria no rosto dela e das outras crianças no quarto me impactou também. Eu queria fazer parte daquilo”, revela.
E Tony foi atrás. Na época, ele precisou passar por uma capacitação de um ano – hoje é de 6 meses – para entender o papel do voluntariado no espaço hospitalar e a importância de pensar no voluntariado como uma atuação profissional que precisa de comprometimento e consciência.
“É um processo importante. Você tem que estar ciente que é algo sério e que precisará da sua dedicação. Em relação às contações, as formações focam na questão de como construir esse momento lúdico. Tem muitas brincadeiras, trocas com as crianças. O treinamento precisa trazer um autoconhecimento para mostrar que é isso que você quer porque estamos em hospitais e crianças morrem. Você precisa saber lidar com isso também”, conta.
Lucas, Serginho, Marcelinha, Gabriel e Vinicius foram algumas das crianças que Tony acompanhou por mais tempo na Santa Casa de Misericórdia em São Paulo. Todos partiram no decorrer dos anos, mas puderam mostrar para Tony a importância do acolhimento que suas contações proporcionavam.
“Tenho tantas lembranças das pessoas que fiz sorrir, emocionei e brinquei. O voluntariado te proporciona isso. O voluntariado está em mim e não dá para tirar. É algo que vou continuar fazendo até o meu último suspiro. É como se tivessem colocado um braço a mais e agora não consigo viver sem ele”, afirma com a voz embargada.
Com a pandemia, Tony não está conseguindo participar das contações online que ocorrem em horário comercial durante a semana. Mas ele vem se dedicando às formações e palestras. Para ele, esse distanciamento de quase um ano e meio vem sendo doloroso.
“Esse contato com as crianças faz uma falta tremenda pra gente. Tá sendo um processo bem difícil, viu? A gente acaba tendo uma relação muito forte, de entender o olhar deles, de oferecer um gesto, um carinho ou dar uma atenção para acolher durante a história. A criança se acalma e se desliga da doença nesses momentos. Então, pra nós que somos voluntários, é quase uma dependência emocional poder contar histórias nos hospitais”, diz Tony.
Um mercadinho para quem precisa
Ações solidárias isoladas se mostraram insuficientes para o empresário Elson Streb, de 62 anos, que observava o aumento constante da vulnerabilidade de diversas comunidades na região de Campinas (SP). Logo nos primeiros meses do isolamento por causa da pandemia da Covid-19, Streb contou com a apoio da família e de amigos para começar a entregar alimentos a quem precisava.
“No começo, ajudávamos pessoas em regiões próximas de onde moramos, levando roupas e alimentos. Com o apoio de amigos e o aumento das doações conseguimos organizar ações maiores. Divulgamos nas redes sociais e foram quase 2 toneladas de alimentos arrecadados e 7 mil reais doados em pouco mais de duas semanas”, relembra Streb.
Hoje, o projeto batizado como Mercadinho Filantrópico entrega doações para 250 famílias vulneráveis nas regiões de Valinhos, Vinheiro, Sumaré, Americana, Pedreira e Ribeirão Preto.
Com entregas mensais, o contato com as comunidades é feito a partir dos líderes comunitários, que auxiliam no mapeamento das famílias que mais precisam.
“Esse diálogo é muito importante para entender o que as famílias necessitam. Ir lá e conhecer quem são essas pessoas, como elas estão vivendo também é importante. Uma coisa é ajudar sem conhecer, outra é ir lá, entrar naquela casa de madeira com esgoto passando no lado e ouvir, saber os nomes e rostos de quem vive naquele espaço. Tem que ter dedicação e respeito”, afirma.
Com um ano e meio de atuação, Streb já tem alguns momentos marcantes das ações voluntárias que realizou. Em dezembro de 2020, ele se vestiu como Papai Noel para entregar brinquedos doados às crianças de uma das comunidades atendidas pelo Mercadinho.
“Foi emocionante. As crianças chegando animadas, sabendo que tínhamos um presente para elas. Foi como ser abraçado por todos os meus netos de uma vez. Ver elas saindo felizes com os brinquedos pelas ruas, não tem o que pague por isso. Doar o seu dia para ver aquelas famílias com algo no armário, as crianças brincando, não tem preço”, revela.
Agora, a proposta é ter um espaço físico para que as pessoas possam ir retirar os alimentos, como em um mercado, sem ter que pagar, além de reunir mais voluntários nas ações.
Por: Mariana Lima
Fonte: observatorio3setor.org.br